Artículos
A ecologia política nas ações dos movimentos socioterritoriais no Brasil: resistências contra os agrotóxicos e na defesa da agroecologia
Resumo: Considerando a consecução de um modelo de desenvolvimento no campo brasileiro baseado na exploração dos bens naturais mediante expansão do agronegócio, o artigo busca compreender as ações de resistência dos movimentos socioterritoriais na defesa da agroecologia e contra o uso de agrotóxicos. Adotou-se como referencial teórico a perspectiva da ecologia política, contribuindo para evidenciar práticas e narrativas insurgentes e emancipatórias. As informações foram coletadas pelo banco de dados da Rede DATALUTA, as quais versam sobre as ações dos movimentos socioterritoriais veiculadas em portais de notícias entre os anos de 2020 e 2021. A partir da análise dessas notícias, evidenciou-se experiências que se articulam na luta contra os agrotóxicos e na resistência produtiva em defesa da agroecologia, por exemplo, fortalecendo a ecologia política da resistência no espaço rural brasileiro.
Palavras-chave: Movimentos socioterritoriais, Ecologia política, Resistência, Agrotóxicos, Resistência produtiva.
The political ecology in the actions of social-territorial movements in Brazil: resistance against pesticides and in defense of agroecology
Abstract: Considering the existence of a development model in the Brazilian countryside based on the exploitation of natural assets through the expansion of agribusiness, the article seeks to understand the resistance actions of socio-territorial movements in defense of agroecology and against the use of pesticides. The perspective of political ecology was adopted as a theoretical framework, contributing to highlight insurgent and emancipatory narratives. The information was collected by the DATALUTA Network database was adopted as an empirical reference, which deals with the actions of socio-territorial movements published in news portals between the years 2020 and 2021. From the analysis of these news, experiences were evidenced that are articulated in the fight against pesticides and in productive resistance in defense of agroecology, for example, strengthening the political ecology of resistance in the Brazilian countryside.
Keywords: Social-territorial movements, Political ecology, Resistance, Pesticides, Productive resistance.
Introdução
No Brasil, assim como na maioria dos países da América Latina, a exploração da terra e da natureza se conformou mediante um “trauma catastrófico de conquista e da integração em posição subordinada (...) no sistema internacional” (Alimonda, 2011, p. 21; tradução nossa). Isso resulta, de acordo com Svampa (2016, p. 142; tradução nossa), numa “nova divisão territorial e global do trabalho, baseada na apropriação irresponsável dos recursos naturais não renováveis, o que deu lugar a novas assimetrias econômicas, políticas e ambientais”. Svampa (2012) também assegura que há uma intensificação de projetos que visam o controle, a extração e a exportação de bens naturais na América Latina, resultando em toda sorte de conflitos e injustiças. Fernandes (2019), por seu turno, analisa a intensificação desse processo no Brasil, também conhecido como estrangeirização da terra, a partir do debate paradigmático direcionado à uma leitura das conflitualidades entre corporações nacionais, multinacionais e movimentos socioterritoriais nas disputas territoriais e por modelos de desenvolvimento.
Nas últimas décadas, as disputas territoriais têm se intensificado com o avanço do modelo neoextrativista mediante a consolidação de atividades como o agronegócio e a mineração. Conforme destaca Batista (2014, p. 23), tem-se vivenciado uma expansão do capitalismo no campo onde a expropriação e exploração dos recursos naturais estão sendo territorializadas, passando assim “a desterritorializar os diferentes sujeitos do campo pela expropriação, exploração e a subsunção de formas não capitalistas de produção”. Desde a década de 1990, observa-se a produção de novas conflitualidades no campo, muitas das quais decorrentes da exploração da natureza.
Neste cenário, os movimentos socioterritoriais, com longo histórico de lutas no Brasil e na América Latina, têm promovido um novo padrão de organização, que leva em consideração a reapropriação social da natureza e que tem “o território [como] o espaço em que se constrói coletivamente uma nova organização social, onde os novos sujeitos se instituem, instituindo seu espaço, apropriando-se material e simbolicamente” (Zibechi, 2007, p. 26; traduça). Para Zibechi (2003), agrupados em movimentos, esses sujeitos lutam por autonomia e emancipação material e simbólica num contexto marcado por assimetrias e relações de poder desiguais.
Especialmente os movimentos que lutam contra as injustiças sociais e que têm o território como condição de existência buscam autonomia como “horizonte de uma prática para superar a injustiça e a alienação de uma ordem imposta e trazer a emancipação coletiva, a dignidade, a esperança, como um processo ativo, consciente, criador e criativo” (Dinerstein, Contartese, Deledicque, Ferrero, Ghioto e Pascual, 2013, pp. 10-11; tradução nossa), incluindo também as pautas ambientais em suas agendas políticas.
Assim, a questão central refere-se a compreender como esses movimentos que atuam no espaço rural no Brasil podem ser analisados a partir de perspectivas teóricas que busquem valorizar os conhecimentos e saberes camponeses em suas relações com a natureza. Para tanto, entende-se esses movimentos a partir do conceito de movimentos socioterritoriais, compreendendo que os territórios são espaços em que as relações sociais se materializam e onde os movimentos atuam e colocam em prática seus projetos políticos (Fernandes, 2005; Torres, 2020). Nesse sentido, a perspectiva crítica da tipologia de territórios proporciona leituras da multidimensionalidade e multiescalaridade dos territórios.
Associam-se as contribuições da ecologia política a fim de explicitar como esses movimentos mobilizam os componentes ambientais em suas narrativas, defendem seus territórios e disputam sentidos de formas legítimas de existir. Procura-se perceber a inserção de novas pautas em suas agendas, historicamente vinculadas estritamente à questão da “luta pela terra”, mas que agora se voltam para pautas mais amplas de “luta na terra”, na defesa da justiça ambiental como elemento intrínseco à defesa de seus territórios e da natureza, de modo a promover, nos termos de Acserald (2010), uma “ambientalização das lutas sociais”. Nessa perspectiva, de acordo com o referido autor:
A noção de “justiça ambiental” exprime um movimento de ressignificação da questão ambiental. Ela resulta de uma apropriação singular da temática do meio ambiente por dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça social. Esse processo de ressignificação está associado a uma reconstituição das arenas onde se dão os embates sociais pela construção dos futuros possíveis. E nessas arenas, a questão ambiental se mostra cada vez mais central e vista crescentemente como entrelaçada às tradicionais questões sociais do emprego e da renda (Acselrad, 2010, p. 108).
Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo compreender as ações dos movimentos socioterritoriais no Brasil, nos anos de 2020 e 2021, frente às investidas do capitalismo agrário representado pela expansão do agronegócio, que tem como um dos eixos centrais criar políticas que sustentam modelos de desenvolvimento baseados na apropriação irresponsável dos bens naturais. Procurando trazer a dimensão ambiental como eixo central da análise, consideram-se, particularmente, as ações de resistência aos agrotóxicos e de defesa da agroecologia no país. Busca-se mobilizar os aportes teóricos da ecologia política para discutir criticamente os conflitos e as relações socioambientais que se configuram no Brasil. A partir da perspectiva da ecologia política, defende-se que é preciso elucidar a natureza enquanto um campo em disputa que tem a ver com um projeto de desenvolvimento marcado pela espoliação dos territórios e pela exploração desenfreada dos bens naturais como mote para a territorialização do capital.
Destaca-se, em oportuno, que nos anos de 2020 e 2021 vivenciavam-se os picos da pandemia da COVID-19, uma emergência sanitária com grandes repercussões sociais e econômicas. Este momento impossibilitou as formas típicas de ações dos movimentos, uma vez que as liberdades foram restritas pelo distanciamento social. Entretanto, os movimentos socioterritoriais atuaram buscando diminuir o efeito da pandemia nas populações mais vulnerabilizadas, “explorando espaços de inovação que se abriram [neste] momento de incertezas” (Della Porta, 2020, p. 1), atuando em redes e produzindo resistências. Os movimentos socioterritoriais continuaram a problematizar e agir em torno de problemas ambientais denunciando as assimetrias existentes na sociedade e o “desequilíbrio das relações entre extração de bens naturais e os sistemas da teia da vida” (Rigotto, 2022).
O artigo está dividido em quatro seções, além desta introdução. Na primeira, apresenta-se a proposta metodológica e os procedimentos de análise. A seção dois corresponde a uma breve revisão do lugar das abordagens teóricas do qual assenta-se o estudo, explicitando a noção de movimentos socioterritoriais e definindo o campo teórico da ecologia política. Na seção três, desenvolve-se a análise das ações dos movimentos socioterritoriais do campo no âmbito das questões ambientais, com foco na resistência aos agrotóxicos e na defesa da agroecologia. Por fim, apresenta-se as considerações finais.
Notas metodológicas e procedimentos de análise
Buscando analisar as ações dos movimentos socioterritoriais à luz da perspectiva da ecologia política, utilizaram-se as informações contidas no banco de dados da Rede DATALUTA, no âmbito do projeto “Movimentos socioterritoriais em perspectiva comparada”. A pesquisa vem sendo realizada desde 2020 no Brasil e atualmente conta com a participação de mais 14 países da América Latina e Caribe, Reino Unido e Canadá. O objetivo da pesquisa é mapear as ações dos movimentos socioterritoriais nos seguintes espaços: água, campo, floresta e urbano.
A pesquisa tem como propósito construir uma matriz de dados para registrar e sistematizar documentos (crônicas, notícias, editoriais, notas de opinião), informes institucionais e boletins informativos, panfletos e outros materiais em formato escrito ou audiovisual disponíveis em sites e plataformas de notícias referentes às ações dos movimentos socioterritoriais, considerando suas diferentes formas de atuação, de luta e de resistência.
Utiliza-se a ferramenta Google Alerta para localizar as notícias, sendo identificadas através de palavras-chave referentes a cada um dos espaços a serem analisados. Registra-se as notícias que apresentam nome de movimentos consolidados, ou seja, movimentos que têm um histórico de lutas. Como exemplo de movimentos consolidados cita-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), a Liga dos Camponeses Pobres (LCP), entre outros. Registra-se ainda ações coordenadas por articulações, frentes ou campanhas, desde que envolvam movimentos socioterritoriais, como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Frente Brasil Popular e a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, por exemplo.
Considera-se que, apesar de possibilitar fazer uma leitura geral das ações dos movimentos, essa ferramenta possui algumas limitações, como, por exemplo, o fato de não conseguir captar todas as notícias veiculadas pelas mídias regionais ou locais. Esta questão já foi observada pelos pesquisadores, que têm procurado pensar outras estratégias para conseguir conhecer as realidades locais utilizando a pesquisa manual nos sites de jornais de menor alcance. Um outro limite da metodologia utilizada refere-se à escolha das palavras-chaves que possibilita a busca das notícias no Google Alerta. Em 2020, ano de início do projeto, foram criadas algumas palavras-chave que não conseguiam captar notícias que eram relevantes para a pesquisa por não conter informações necessárias sobre as ações. Assim, em 2021, houve uma reorganização das palavras-chave a fim de ter um aproveitamento melhor das ferramentas de busca. Atualmente a pesquisa conta com 89 palavras-chave, o que permite aumentar o alcance das notícias sobre as ações dos movimentos socioterritoriais no Brasil.
Mesmo com esses desafios e limites, tem-se um retrato parcial das mobilizações e resistências no campo para os anos de 2020 e 2021, que permitiu fazer uma análise também qualitativa das notícias. Esse processo foi feito em diálogos coletivos com as discussões teóricas, onde definiu-se como unidade de análise as ações dos movimentos socioterritoriais para uma primeira organização dos dados obtidos. As notícias foram cadastradas em um formulário eletrônico denominado Jotform, que automaticamente as enviou para uma planilha Excel, contendo informações como: título e fonte da notícia, data e local da ação, atores identificados, tipo de ação, número de pessoas e/ou famílias envolvidas, relação com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre outras.
Para este artigo em específico, a fim de dialogar com a ecologia política e considerando as injustiças distributivas nos conflitos travados no campo, trabalhou-se com dois agrupamentos de ações: i) protestos e resistências contra agrotóxicos; ii) resistência produtiva em defesa da agroecologia. Depois de identificadas essas notícias, realizou-se uma análise quantitativa das mesmas, apontando o número de ações para cada um dos eixos e identificando as regiões de atuação dos movimentos, bem como quais os principais movimentos envolvidos. Nessa primeira sistematização, selecionou-se alguns exemplos de ações e buscou-se, qualitativamente, explorar as narrativas dos atores, bem como dar visibilidade aos repertórios utilizados.
Mobilizando o debate entre ecologia política e movimentos socioterritoriais
Como perspectiva analítica, parte-se dos pressupostos da abordagem da ecologia política (Leff, 2006, 2021; Alimonda, 2011; Svampa, 2010, 2012, 2016, 2019; Escobar, 2005) para compreender as ações dos movimentos socioterritoriais, permitindo analisar as narrativas e os conflitos que atravessam as relações entre os seres humanos entre si e entre estes e a natureza. Iamamoto, Lamas e Empinotti (2020, p. 13) traduzem a ecologia política como “uma construção coletiva interdisciplinar que emerge a partir dos silenciamentos das teorias sociais e políticas perante os desafios associados aos aspectos destrutivos da modernidade”, de modo a considerar, entre outros elementos, a “apropriação violenta da natureza e uma concentração cada vez maior do capital que gera a perpetuação e a acentuação das desigualdades sociais”.
A ecologia política se insere dentro de um campo de reflexão ativista, que busca combinar a ação militante com a construção do conhecimento científico, em constante diálogo com atores sociais que estão no enfrentamento cotidiano. Conforme destacam Parreira e Alimonda (2005), a ecologia política está se constituindo como um novo campo de reflexão multidisciplinar e que busca fazer um diálogo articulando diferentes disciplinas. Para Iamamoto, Lamas e Empinotti (2020, p. 15), a “ecologia política vincula teorias e práticas acadêmicas relacionadas às questões ambientais com a ação política”, mobilizando distintas perspectivas.
Esta análise possibilita reconhecer as múltiplas formas que a natureza se apresenta no mundo contemporâneo, especialmente de modo a compreender “as práticas dos agentes/atores sociais envolvidos em situações de resistência e ativismo (...) com a necessidade de articular os conceitos de ambiente, território e lugar” (Souza, 2020, p. 23). Neste sentido, pensar os processos sociais pelas lentes da ecologia política possibilita apreender a “diversidade de relações culturais com a natureza e as desigualdades territoriais na distribuição dos seus recursos, não somente sobre a redistribuição puramente econômica” (Imamoto, Lamas e Empinotti, 2020, p. 15), mas incorporando a natureza na crítica ao modo de produção capitalista.
Tal concepção aponta para a necessidade de considerar a diversidade de atores envolvidos diretamente em processos de reapropriação social da natureza (Leff, 2006; Porto-Gonçalves, 2012), enquanto mecanismo de construir novas narrativas e pautar politicamente a defesa dos bem-comuns e das sociabilidades e territorialidades social e historicamente concebidas. É nesse âmbito que se inserem os movimentos sociais, ou, em outros termos, dos movimentos socioterritoriais, que adotam a ecologia política como horizonte epistemológico que vem a contribuir com seus processos de luta e resistência, ampliando as pautas e produzindo novas agendas de mobilização política.
É nesse sentido que Alimonda (2017) assegura que a ecologia política resulta do encontro entre o pensamento crítico latino-americano e as inúmeras experiências e estratégias de resistência dos povos e dos movimentos da América Latina, dando origem a intersecções próprias e advindas das lutas historicamente travadas na região, as quais reafirmam o protagonismo dos atores sociais na redefinição constante de suas agendas. De certo, os movimentos socioterritoriais, na disputa por terra e por território, também passaram a incorporar a pauta ambiental enquanto central para reafirmar suas estratégias de luta contra as frações do capital no campo e na defesa de seus projetos coletivos de vida.
Assim, os movimentos socioterritoriais devem ser pensados como protagonistas do processo de reestruturação da dinâmica entre as lutas sociais e a dimensão ecológica. Para Svampa (2010), esses movimentos têm ampliado sua plataforma discursiva inserindo novas questões às pautas tradicionais, ainda que a pauta unificadora seja em torno da terra e do território. Ainda segundo a autora, “novas formas de mobilização e participação cidadã centrada na defesa de recursos naturais, biodiversidade, meio ambiente, vem desenhando uma nova cartografia das resistências” (Svampa, 2010, p. 6; tradução nossa).
Nesse sentido, parte-se da consideração de que os movimentos sociais que atuam na América Latina, especialmente relacionados às disputas territoriais, podem ser lidos pela perspectiva geográfica e, portanto, considerados como “movimentos socioterritoriais” (Fernandes, 2005). Analisar esses movimentos, em particular no Brasil, requer compreender que os territórios têm sido centrais para sua teoria e prática política. Segundo Cardona e Sobreiro Filho (2016), a partir da abordagem socioterritorial é possível analisar os movimentos pela lógica emancipadora e de resistência frente aos ataques do modelo capitalista de produção no campo, sobretudo na América Latina, “cuja ocupação foi historicamente sedimentada através do conflito, opressão e exploração” (Cardona e Sobreiro Filho, 2016, p. 149).
Conforme destacam Halvorsen, Fernandes e Torres (2021), os movimentos socioterritoriais têm o território como sua característica definidora, pensando-o como um processo dinâmico e relacional. Os movimentos socioterritoriais são aqueles que se apropriam do espaço e, mediante o avanço das consequências do modelo neoextrativista que explora os territórios, originam resistências sociais em torno da proteção do meio ambiente e da relação sociedade-natureza (Bour, 2020), num contexto dialógico que leva em consideração diferentes estratégias de luta e resistência e em articulação com distintos atores.
Para Fernandes (2005, p. 31) “é preciso compreender as formas de organização dos movimentos, tomando como referência o espaço, o território e o lugar produzidos por suas ações por meio das relações sociais”. Ou seja, é necessário levar em conta a geograficidade dos movimentos, considerando sua íntima relação com o território. Nesse âmbito, é correto afirmar que os “movimentos socioterritoriais têm o território não só como trunfo, mas este é essencial para sua existência” (Fernandes, 2005, p. 31). Os movimentos socioterritoriais constroem espaços políticos e, portanto, segundo Halvorsen, Fernandes e Torres (2021, p. 29), tais movimentos “não são apenas produzidos por ocupações de terra, mas incluem qualquer tentativa de apropriação e controle do espaço com o objetivo de promover um projeto político”.
O território, neste sentido, atua como o lugar privilegiado da disputa e dos conflitos e “expressa uma forma de apropriação (territorialização) que enseja identidades (territorialidades) em constante transformação, são dinâmicos e mutáveis, e concretizam uma determinada ordem num determinado momento” (Pedon, 2009, p. 155). O território pode ser entendido como “a manifestação espacial do poder fundamentada em relações sociais determinadas, em diferentes graus, pela presença de energia –ações e estruturas concretas– e de informação –ações e estruturas simbólicas” (Torres, 2020, p. 115). Pode-se assegurar que o “território é espaço de vida e morte, de liberdade e de resistência” (Fernandes, 2005, p. 30), que expressa o sentido da conflitualidade e da territorialidade que permeiam os processos intrínsecos aos movimentos socioterritoriais.
Esses movimentos têm buscado defender seus territórios, desde a perspectiva tradicional da “luta pela terra”, mas recentemente ampliando para a “luta na terra”, em defesa da justiça ambiental. Movimentos que tradicionalmente agiam e se mobilizavam pela questão da terra passam a atuar em frentes ambientais de proteção da natureza e retomada dos projetos de vida nestes territórios. Como veremos na sequência, movimentos tradicionais de luta pela terra passaram a incorporar a defesa da agroecologia e a resistência aos agrotóxicos como estratégias de luta em sinergia com a construção de justiça social e ambiental no Brasil.
Ações dos movimentos socioterritoriais no Brasil: agrotóxicos e agroecologia
No Brasil, em 2020 e 2021, mesmo vivenciando um momento de restrições advindas da pandemia da COVID-19, os movimentos socioterritoriais se reorganizaram e se reinventaram para pautar suas tradicionais bandeiras de luta e defender seus territórios. No que tange às questões ambientais, tendo uma história marcada por conflitos e em um contexto político de um governo de extrema-direita no país, os movimentos socioterritoriais tiveram que lidar com o avanço do agronegócio sobre as comunidades tradicionais e com o desmonte de políticas públicas. Num contexto de “ambientalização das lutas sociais” (Acselrad, 2010), tais movimentos estiveram em constante diálogo com as pautas ambientais, conforme apresenta-se nessa seção, incorporando novos elementos às suas agendas e repertórios.
De modo específico, registraram-se ações relacionadas aos protestos contra agrotóxicos e à iniciativas agroecológicas, incluindo a produção de alimentos saudáveis e resistência produtiva, tendo como agentes centrais os movimentos socioterritoriais de luta no campo. Em 2020 foram contabilizadas 33 ações no âmbito dessas dimensões: 5 notícias referentes a protestos e resistências contra os agrotóxicos e 28 notícias relacionadas à resistência produtiva e agroecologia. Por sua vez, em 2021 foram cadastradas 48 ações: 7 notícias sobre protestos contra os agrotóxicos e 41 referentes à resistência produtiva e a pauta agroecológica. Na sequência apresenta-se uma análise qualitativa relacionada a essas duas grandes dimensões, as quais têm em comum uma perspectiva ecológica da luta na terra.
Protestos e resistências contra os agrotóxicos
As ações de protesto contra os agrotóxicos tiveram a ver com o aumento crescente do consumo de insumos químicos no país. Desde 2008, o Brasil ocupa o posto de maior consumidor de agrotóxicos no mundo (Carneiro, Rigotto, Augusto, Friederich e Búrigo, 2012). Diante dos riscos causados pelos agrotóxicos à saúde pública e ao ambiente, particularmente a partir da década de 2010, os movimentos socioterritoriais do campo passaram a se engajar com maior ênfase na luta contra os agrotóxicos, seja em rede, seja através de ações próprias. Desse modo, as mobilizações contra os agrotóxicos, que vinham acontecendo de maneira mais esparsa, começaram a ter maior regularidade. Nos últimos anos, os movimentos denunciaram sobretudo as tentativas de alteração das leis do país, além de protestarem contra a pulverização aérea em áreas de assentamentos.
Especialmente depois da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, o país vem flexibilizando as regras para a utilização dos agrotóxicos, causando uma série de protestos e manifestações. Vários movimentos socioterritoriais, como o MST, a CPT, o MPA, entre outros, têm se articulado com outras entidades e instituições de pesquisa em torno da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e, nos últimos anos, acionaram diferentes táticas para tentar barrar projetos de leis que tentam alterar políticas que buscavam frear o consumo de agrotóxicos no país. Além dessas ações em âmbito nacional, em alguns Estados (Ceará, Pará, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, por exemplo) várias mobilizações também têm acontecido para denunciar e criar leis que proíbam a pulverização aérea de agrotóxicos e o/ou impeçam esse tipo de ação em territórios próximos a acampamentos e assentamentos rurais.
No ano de 2020, registraram-se cinco ações contra os agrotóxicos. Dessas, três aconteceram em âmbito nacional e duas no Estado do Rio Grande do Sul. Nota-se que as que aconteceram em âmbito nacional tiveram como principais protagonistas a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o MST e a CPT. As principais reivindicações referem-se à liberação de agrotóxicos no país. Como exemplo, evidencia-se uma manifestação realizada por 300 mulheres camponesas ligadas ao MST que, no dia 9 de março de 2020, ocuparam o Ministério da Agricultura em protesto contra a liberação de novos registros de agrotóxicos. Como estratégias de ação, elas mobilizaram aspectos simbólicos como a tinta vermelha no chão em protesto contra as mortes causadas pela intoxicação de camponeses por agrotóxicos, além de um caixão coberto pela bandeira do Brasil na porta do Ministério em alusão às mortes dos camponeses que são envenenados anualmente (DF: Camponesas protestam contra liberação..., 2020).
Os dois protestos no Rio Grande do Sul, mapeados no ano de 2020, tiveram como foco central o governo do Estado, que buscava flexibilizar a lei de agrotóxicos. Movimentos socioterritoriais, incluindo o MST e o MPA, junto com outras entidades, elaboraram uma carta que foi enviada ao governador Eduardo Leite (PSDB) pedindo a retirada do regime de urgência do Projeto de Lei (PL 260/2020), que alterava o cadastro de agrotóxicos sem autorização de uso no país de origem. As entidades também propuseram um debate aberto dessa pauta com a população, ouvindo produtores, feirantes, pesquisadores, especialistas e entidades ambientalistas e da saúde (Entidades se mobilizam contra projeto..., 2020b). Notou-se a preocupação dos movimentos socioterritoriais, em constante articulação com parlamentares e outras entidades da sociedade civil, com a expansão da utilização dos agrotóxicos que viriam a causar danos em suas plantações, à saúde e ao meio ambiente, além de apontarem para o retrocesso caso a lei viesse a ser aprovada.
Para o ano de 2021, por sua vez, registraram-se sete ações contra os agrotóxicos. Dessas, três ocorreram em âmbito nacional a partir de denúncias sobre o aumento do uso dos agrotóxicos no país, mediante atuação do MST, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Em março de 2021, foi publicada no portal Outras Palavras uma denúncia de um dirigente nacional do MST feita em outubro de 2020, expondo a problemática da dinâmica do agronegócio no campo, especialmente relacionada ao uso abusivo dos agrotóxicos. O representante do MST, além de ter denunciado o agronegócio e os agrotóxicos, fomentou o debate sobre a necessidade e a importância da agroecologia, conforme observado na sua fala:
a gente acredita que a Agroecologia pode revolucionar esse mundo, revolucionar o padrão alimentar, revolucionar a relação estabelecida do metabolismo humano com a natureza nesse processo de produção da nossa existência, e ela pode revolucionar a forma como a gente concebe a nossa vida (Gerson Oliveira e a árida luta..., 2021).
Assim como esse documento destaca-se também, em junho de 2021 no site do jornal Monitor Mercantil (Sem debate e com processo irregular...), a preocupação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, especialmente da ANA, com a importação e a comercialização do trigo transgênico e, consequentemente, o aumento do uso de agrotóxicos para esse tipo de cultivo. Os representantes dessas entidades enviaram um ofício ao Ministério Público Federal (MPF) e à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) questionando a falta de debate público sobre esse processo. Além dessa ação, ainda com recorte nacional, ocorreu uma audiência pública para debater o impacto do uso dos agrotóxicos no Brasil na Comissão de Meio Ambiente (CMA), em setembro de 2021, com a participação de pesquisadores do IPEA, UFPR, UnB e representantes do MST.
Nos Estados, os protestos contra os agrotóxicos aconteceram no Pará, Ceará, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, contando com a participação do MST (em duas ações: PA e RS), da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (uma ação no CE) e da ANA (uma ação no MS). As ações referiram-se a denúncias contra a pulverização aérea de agrotóxicos (PA), mobilizações para o fim das isenções fiscais de agrotóxicos (CE), ações conquistadas de regularização de leis proibindo a pulverização aérea de agrotóxicos (MS) e a suspensão do uso de agrotóxicos perto das lavouras dos assentamentos rurais (RS). Todas as ações aqui mencionadas, para além de outras não mapeadas pela pesquisa, reafirmam o compromisso político dos movimentos socioterritoriais em defesa dos bens comuns e da vida, reposicionado sua luta contra o neoextrativismo químico-dependente.
Resistência produtiva e agroecologia
Os movimentos socioterritoriais que atuam no campo passaram por diversas situações inesperadas em 2020 e 2021 com o advento da pandemia de COVID-19, mas especialmente com a ascensão de Jair Bolsonaro como presidente do país, a partir de 2019, fragilizando a gestão e promovendo cortes nos orçamentos de políticas públicas. Conforme já destacado por outros autores (Sabourin, Craviotti e Milhorance, 2020; Santos, Menezes, Leite e Sauer, 2021; Grisa, 2018), diversas políticas públicas que possibilitaram a inserção da pauta agroecológica e de segurança e soberania alimentar foram desmontadas, conforme destaca Sabourin (2021):
No caso do governo Bolsonaro, paradoxalmente, o desmantelamento simbólico teve duas faces: certas políticas foram cortadas mesmo sendo já marginais pelo seu valor ideológico (a política nacional de agroecologia e produção orgânica, ou o apoio as comunidades indígenas e povos tradicionais); para outras políticas, também associadas ao governo anterior do Partido dos Trabalhadores o desmantelamento foi anunciado com muita publicidade ao nível discursivo, mas por diversas razões (técnicas, constitucionais ou administrativas) não foi totalmente realizado ou completado (p. 4).
Nesta conjuntura, os movimentos socioterritoriais do campo que atuam em defesa da agroecologia vêm resistindo e, nesses anos, mesmo com todas as adversidades, continuaram produzindo alimentos agroecológicos, além de reafirmarem compromissos coletivos e solidários na estruturação de cooperativas e feiras, conforme observado com a leitura das ações realizadas entre 2020 e 2021, que reforçam a organicidade dos movimentos no âmbito da agroecologia. Em 2020 foram registradas 28 ações de resistência produtiva e incentivos à agroecologia. Essas ações, em sua maioria (24), ocorreram nos Estados e tiveram como protagonista principal o MST. Somente quatro ações foram registradas em âmbito nacional.
Duas dessas ações nacionais referem-se a notas lançadas por entidades com a participação de movimentos socioterritoriais repudiando as ações do Governo Federal, seja no que se refere ao combate da pandemia, seja contra a promoção e incentivo ao agronegócio, com participação conjunta de entidades e movimentos, como ANA, CPT, CONTAG, MST, MPA e MMC. A terceira ação nacional refere-se ao lançamento da campanha “Sementes de Resistência: camponesas semeando esperança e tecendo transformação”, organizada pelo Movimento das Mulheres Camponesas (MMC). Trata-se de promover o reconhecimento dos saberes populares das mulheres camponesas e o seu papel fundamental na construção da soberania alimentar. Por fim, a quarta ação foi um documento elaborado pela ANA solicitando apoio do Governo Federal para a compra direta de produtores familiares e a entrega de alimentos em estabelecimentos cadastrados de saúde, educação e assistência social.
Além das ações nacionais, as principais ações dos movimentos socioterritoriais referentes a resistência produtiva e agroecologia aconteceram em âmbito local. Foram 24 ações distribuídas entre as seguintes regiões brasileiras: 11 na região Sul, 5 no Sudeste, 6 no Nordeste e 2 no Norte, abarcando 10 diferentes Estados. Não foi registrada em nossa base de dados nenhuma ação na região Centro-Oeste. O mapa da Figura 1, na sequência, apresenta a distribuição espacial das ações de resistência produtiva e agroecologia realizadas pelos movimentos socioterritoriais em 2020.
Verificou-se que no Sul do país foram notificadas a maioria das ações, sendo 6 registros no Paraná e 5 no Rio Grande do Sul. Nota-se que as principais resistências produtivas se referem à produção agroecológica de arroz, mel e hortaliças, por exemplo, não só para o consumo interno e comercialização, mas para doação de alimentos para comunidades em situação de vulnerabilidade. Observa-se que os movimentos se mantiveram em seus territórios, produzindo e resistindo mesmo com as desigualdades territoriais históricas e acentuadas com o contexto de pandemia. Um exemplo dessa resistência aconteceu no Paraná em julho de 2020, quando foi inaugurado num acampamento do MST o Centro de Produção Agroecológica Pinheiro Machado, do qual participaram moradores da cidade, religiosos, entidades e outros movimentos populares, em solidariedade aos agricultores (Após ter lavoura destruída..., 2020a).
Na região Nordeste, por seu turno, as ações se referem à produção de alimentos agroecológicos, como estratégia para tirar pequenos agricultores da pobreza, além de conquista de assistência técnica para garantir a resistência produtiva nos assentamentos. Já na região Sudeste, evidencia-se a formação de cooperativas para a promoção da agroecologia, a implementação de ações a fim de possibilitar a recuperação de bacias hidrográficas e a realização de encontros e campanhas de agroecologia. Destaca-se também a ocupação de uma área abandonada, para recuperação do solo e plantio de mudas de árvores e hortas no local. Na região Norte, registrou-se a realização de uma semana agroecológica realizada com o apoio do MST e uma reunião para acordar sobre a distribuição de sementes de milho, mobilizada pelo Movimento Camponês Popular (MCP).
Em 2021, por sua vez, foram 41 ações registradas de resistência produtiva e agroecologia. Em âmbito nacional foram registradas apenas três ações. Dois registros dizem respeito à articulação entre MST e Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) em defesa da agroecologia. Nas ações, pesquisadores e ativistas defenderam a agroecologia, conforme aponta um dos representantes: “a agroecologia é o caminho para responder à crescente devastação do meio ambiente, para desenvolver a soberania nacional e capaz de sanar a fome de toda a população” (Por que agricultores e pesquisadores..., 2021b). Ainda reivindicaram o retorno do funcionamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a garantia de repasses financeiros ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o investimento no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Uma terceira ação cadastrada em 2021 foi referente a produção de cestas agroecológicas pelo MST para a comercialização nos armazéns do campo.
Além dessas ações com abrangência nacional, também como em 2020 as principais ações dos movimentos socioterritoriais referentes a resistência produtiva e agroecologia aconteceram em âmbito local. Foram ações distribuídas entre as seguintes regiões brasileiras: 17 na região Sul; 12 no Nordeste; 6 no Sudeste; 4 no Norte; 2 no Centro-Oeste. O mapa da Figura 2, na sequência, apresenta a distribuição espacial das ações de resistência produtiva e agroecologia realizadas pelos movimentos socioterritoriais em 2021. A maior parte das ações registradas refere-se aos Estados do Sul do país, com destaque para Paraná (com 9 ações) e Rio Grande do Sul (com 7).
A maioria das ações foi protagonizada pelo MST, mas tendo outras organizações e movimentos envolvidos. Como exemplo, destaca-se uma notícia que registra a importância da produção de feijão orgânico. Segundo a nota no Brasil de Fato (Após colheita coletiva..., 2021a), o local da produção do feijão era “uma área pública utilizada ilegalmente por cooperativas do agronegócio para testes de insumos, hoje o terreno é gerido por 150 famílias que vivem da venda de produtos com certificação agroecológica pela Rede Ecovida”. Trata-se, portanto, da reapropriação do território pelo MST para dar sentido à pauta agroecológica e de acesso à terra. Além da certificação de alimentos, registra-se o lançamento da marca de alimentos orgânicos “Terra Livre Agroecológica” por cooperativas do MST, evidenciando os valores da agroecologia. Segundo uma das cooperativadas:
Isso compreende novas relações de gênero, a democratização da terra e dos meios produtivos, o fortalecimento da soberania popular, a organização de cadeias produtivas, a participação ativa das bases, a aliança com organizações sociais e a luta política, com o objetivo construir um mundo melhor para a humanidade (MST lança marca de alimentos orgânicos no RS, 2021).
Das ações realizadas na região Nordeste, destaca-se a produção de chocolate com cacau orgânico e com o protagonismo da juventude, a luta das mulheres na produção e em defesa da agroecologia com base no feminismo e feiras com a venda de produtos agroecológicos advindos de acampamentos e assentamentos rurais. Vale destacar o desenvolvimento de uma tecnologia social para a quebra do coco babaçu que melhora as condições de trabalho das mulheres, fruto da parceria entre Embrapa e as quebradeiras de coco de comunidades extrativistas, garantindo a resistência produtiva no território. Ainda dentre essas ações no Nordeste, ressalta-se a aprovação da Política para a Agricultura Familiar, Camponesa e dos Povos das Águas no Estado de Sergipe, como resultado das mobilizações dos movimentos socioterritoriais, sindicatos rurais, representantes de pescadores e pescadoras artesanais.
Já na região, dentre as ações registradas destaca-se, além das feiras e produções agroecológicas, que também aconteceram em outras partes do país, a iniciativa de uma comunidade quilombola na busca por recuperar uma terra que foi, durante anos, espaço de cultivo de eucaliptos. Segundo o jornal Século Diário (Quilombolas trazem vida de volta..., 2021), 40 famílias que esperavam serem reconhecidas como quilombolas estavam cultivando frutas, verduras, especiarias e árvores nativas, colhendo alimentos e fazendo rebrotar a água. Entretanto, nota-se que essas mesmas famílias estavam sendo ameaçadas de despejo por uma ação de reintegração de posse da empresa Suzano, mas continuaram mobilizadas buscando reivindicar seus direitos. Além desse exemplo, destaca-se a resistência em um acampamento vinculado ao MST, onde defende-se a produção agroecológica como garantia para a soberania alimentar.
Na região Norte, as ações referem-se à reivindicação de políticas públicas para a agricultura familiar, com protagonismo do MPA e Via Campesina, além de uma parceria entre cooperativas e a Natura para o cultivo agroecológico do dendê, com investimento no sistema agroflorestal (SAF). Por fim, na região Centro-Oeste as ações dizem respeito à criação de hortas urbanas sem uso de agrotóxicos por estudantes em articulação com movimentos socioterritoriais, que resultou na implantação da RIHU (Rede Integrada de Hortas Urbanas), além da plantação e colheita de soja orgânica como estratégia de resistência ao modelo químico-dependente do agronegócio.
Esse conjunto de ações registradas entre 2020 e 2021, totalizando 69 registros, abarca todas as regiões do país e a maioria dos Estados, evidenciando as ações realizadas pelos movimentos socioterritoriais no âmbito da resistência produtiva pelas vias da agroecologia e da produção orgânica, com fortes conotações que defendem a sustentabilidade das práticas agrícolas e o cuidado com a saúde das pessoas e do ambiente. Isso ocorre de modo a reafirmar que o sentido ecológico é inerente também à luta pela terra, vinculando território e natureza numa mesma cosmovisão centrada na produção de um outro modelo de desenvolvimento para o campo.
Considerações finais
Realizar uma leitura das ações dos movimentos socioterritoriais à luz da ecologia política demonstrou a necessidade de considerar a diversidade de pautas defendidas por tais movimentos, as quais não se restringem unicamente à luta e à defesa da terra e território, uma vez que suas agendas de mobilização e articulação políticas são ampliadas na medida em que se intensificam os entendimentos de que é necessário incorporar outras dimensões como centrais em suas estratégias de resistência. É notável, conforme a análise das ações aqui descritas, que os movimentos socioterritoriais passaram a inserir novas pautas em suas lutas, de modo a resgatar o sentido da coletividade na reapropriação social da natureza.
Notou-se, com a análise do material, a diversidade de movimentos socioterritoriais registrados nas ações, mas com grande incidência sobretudo do MST, o que evidencia que esses movimentos passaram a considerar a questão ambiental como um importante elemento que deve ser pautado no âmbito de suas mobilizações e articulações. A pauta ecológica surge, como observado nas notícias, particularmente quando se defende a produção de alimentos agroecológicos e quando se rebela contra o uso de agrotóxicos. Isso evidencia não só a escolha política por um determinado projeto de desenvolvimento para o campo, com foco na agroecologia, como também um compromisso na luta por justiça ambiental diante do avanço do capitalismo agrário no campo.
Nesse sentido, notou-se que, ao passo que protestaram contra os agrotóxicos, os movimentos socioterritoriais pautaram politicamente a agroecologia como o único modelo de desenvolvimento para o campo capaz de produzir alimentos de maneira sustentável com base no respeito, na dignidade e no cuidado aos bens naturais e aos sujeitos, do campo e da cidade. Ficou evidente, através da leitura das matérias, que os movimentos socioterritoriais de luta pela terra incorporaram a defesa da agroecologia e a resistência aos agrotóxicos como estratégias de luta em sinergia com o movimento de promoção da justiça ambiental no país, reafirmando seu papel histórico na construção social e política da nação.
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Recepción: 23 Noviembre 2022
Aprobación: 15 Mayo 2023
Publicación: 01 Julio 2023